Por Laíza Castanhari

Ao contrário do que muita gente acha, pessoas com deficiência intelectual também podem se tornar autônomas, dependendo do cuidado e estímulo que recebam. Autonomia é quando a pessoa consegue lidar com sua rede de co-dependências, exercendo o direito de expressar vontades e tomar decisões. Mas, para ter acesso aos seus direitos e, assim, desenvolver suas capacidades, é importante que obtenham uma avaliação diagnóstica por uma equipe multidisciplinar.

O tempo de espera por um laudo, porém, pode chegar a até dois anos, tornando-se um obstáculo ao acesso a direitos por pessoas com deficiência intelectual. O projeto Gestão do Cuidado, executado pela Apae Campinas desde 2019, em parceria com a Fundação FEAC, tem como objetivo diminuir esse prazo para no máximo seis meses, ao apurar o olhar dos profissionais que encaminham as crianças.

No primeiro ano do projeto, a fila de espera reduziu 21,5%. Em outubro de 2018, por exemplo, havia 251 pessoas aguardando atendimento. No mesmo período do ano seguinte, eram 197.

Trabalho em rede

Antes do projeto, aproximadamente 50% das pessoas encaminhadas para a avaliação na Apae não tinham deficiência intelectual. Regiane Fayan, líder do Programa Mobilização para Autonomia, da FEAC, explica que os encaminhamentos são feitos pela rede de saúde, e muitos chegam ali indicados por profissionais de saúde, professores ou pedagogos. Isso indica a necessidade de apurar o olhar desses profissionais. A meta do Gestão do Cuidado é aumentar a elegibilidade dos casos para 80%, o que significa diminuir os encaminhamentos equivocados. Atualmente, dos que chegam, 69% são, de fato, relacionados à deficiência intelectual.

“A partir da discussão de casos, precisamos despertar nos profissionais de escolas e centros de saúde – que são as duas frentes do projeto – um olhar mais apurado para as características que têm de observar na criança para fazer o encaminhamento”, explica Regiane. Essa é uma das ações do matriciamento, estratégia também utilizada neste projeto.

Algumas vezes, o encaminhamento é influenciado pelo contexto social e familiar da criança, que devem ser considerados. “Situação de vulnerabilidade social e violência, por exemplo, são influência para que ela não tenha estímulo dentro de casa ou não seja olhada na escola, mas não significa necessariamente que a criança tenha alguma deficiência, devido à ausência do Estado em relação a muitas crianças e adolescentes ”, analisa a líder da FEAC.

No Gestão do Cuidado, a equipe que atende as crianças é multidisciplinar, composta por uma psicóloga, uma neuropedagoga, uma assistente social e uma neuropediatra. Mesmo com o olhar mais qualificado, o trabalho não cessa: “um dos nossos indicadores era zerar a fila, mas tiramos essa meta porque, se você apura, pode ser que então o profissional comece a ter um olhar para outros casos que ele não imaginava”, explica Regiane. Para o segundo semestre de 2021, está previsto o início do monitoramento de impacto do projeto.

Diagnóstico

A pessoa vem antes de qualquer diagnóstico, portanto, é importante um olhar cuidadoso e investigativo na avaliação. “O resultado deve ocasionar uma visão biopsicossocial do indivíduo, garantindo-lhe os cuidados necessários em todos os aspectos de seu desenvolvimento”, explica Marina Stahl Merlin, neuropsicóloga da Apae Campinas.

O tempo da pessoa com deficiência intelectual é diferente, pois ela apresenta mais dificuldades para aprender e realizar tarefas rotineiras, devido ao comprometimento cognitivo.

Caio Bruzaca, médico geneticista do Instituto Jô Clemente, voltado a pessoas com deficiência intelectual, explica que o diagnóstico só pode ser dado a partir dos 6 anos. “Antes disso, a gente chama de atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, que é a demora para andar e falar.”

O Gestão do Cuidado é voltado para crianças a partir de três anos. Caso um atraso no desenvolvimento seja identificado, a família recebe indicações de encaminhamento, mas não um laudo definitivo.

Depois dos 6 anos, quando o diagnóstico sobre deficiência intelectual é confirmado, a criança com deficiência e a família recebem, então, as orientações necessárias. A pessoa passa a ter direito a benefícios, serviços especializados e atendimento prioritário. “Quanto mais tarde for feito o diagnóstico, maiores vão ser os prejuízos da pessoa com deficiência intelectual e a sua distância em relação a quem não tem”, ressalta o médico.

Stephanie Lima Ferreira, por exemplo, era chamada de “preguiçosa” na escola por não conseguir acompanhar seus colegas de turma. Aos 17 anos, ela começou em seu primeiro emprego e também recebeu o diagnóstico de deficiência intelectual. Assim, entendeu finalmente que seus professores estavam errados.

“Agora a minha vida vai começar a andar”, pensou Stephanie quando recebeu o laudo pela então Apae São Paulo, atualmente Instituto Jô Clemente. Ela começou a estudar os seus direitos, entrou para o Programa de Autodefensoria do instituto e tornou-se porta-voz da causa.  Hoje, com 24 anos, ela é conselheira municipal da pessoa com deficiência, em São Paulo.

Já o adolescente Reuel, 14 anos, passou pelo Gestão do Cuidado há um ano, quando recebeu o laudo. A mãe, Roselene da Conceição, conta que a preocupação com o garoto começou quando percebeu que ele não conseguia aprender na escola.

A avaliação pode identificar também transtornos de aprendizagem. Nesses casos, o comprometimento afeta apenas o desempenho escolar. Já a deficiência intelectual pode comprometer outras atividades do dia a dia, quando não há os apoios necessários e o excesso de barreiras. Em qualquer caso, as primeiras suspeitas costumam aparecer no ambiente escolar.

Após receber o laudo, Reuel passou a frequentar os serviços da Apae de Campinas, que têm o intuito de fazer sua reabilitação para alcançar sua autonomia. Durante a pandemia, ele participa das consultas por vídeo. “O Reuel está se desenvolvendo bastante, e a gente tem expectativas de que se desenvolva ainda mais”, diz Roselene.

Transpondo barreiras

Os direitos da pessoa com deficiência intelectual são garantidos pela Lei Brasileira de Inclusão (LBI), de 2015, e visam remover barreiras para a inclusão na sociedade. Nas escolas, por exemplo, é garantido o direito à sala com recursos multifuncionais e, caso seja necessário, um professor auxiliar.

Ao fazer o Enem, Stephanie ficou em um ambiente separado, com um auxiliar, e dispôs de mais tempo de prova. A jovem planeja fazer faculdade de pedagogia: “Quero dar aulas voltadas a alunos com deficiência. Eu sofri muito na escola, não tinha material adaptado e os professores só me davam desenho. Eu falava: não me dá desenho porque eu não gosto. Precisa ter material e explicação acessíveis”.

Uma barreira que ainda precisa ser transposta é a atitudinal, relacionada a preconceitos, que estigmatizam quem recebe um diagnóstico.

“Por muito tempo, pessoas com deficiência intelectual foram excluídas do convívio social por puro desconhecimento.”

Marina Stahl Merlin, neuropsicóloga da Apae Campinas


 

A neuropsicóloga explica: “A deficiência intelectual pode cursar diferentes caminhos, dependendo de quanto estímulo e atenção existir. Uma boa terapêutica pode ocasionar a mudança diagnóstica de casos leves para fora dos critérios diagnósticos, assim como a falta de terapêutica pode ocasionar a piora de casos mais brandos”.

Para Stephanie, dizer que possui deficiência intelectual não é mais vergonha. Ela se apropriou dos seus direitos e refletiu que a sociedade precisa promover a inclusão. “As pessoas têm de entender, primeiro, o que é deficiência intelectual. Não está no rosto, não dá para ver. Depois, têm de entender a pessoa: ver como ela conversa, mas não tratar como coitadinha. Precisa tratar conforme a idade e o jeito dela.”