O penúltimo dia de depoimentos da CPI da Covid no Senado Federal, em 18 de outubro, foi dedicado a ouvir parentes de vítimas da epidemia. Um momento ganhou destaque: um intérprete de libras teve que pedir para ser substituído ao ceder à emoção durante uma fala. Quem contava sua história era Geovanna Gomes Mendes da Silva, de 19 anos. Ela perdeu pai e mãe, e se tornou responsável pela guarda da irmã de 10 anos.

A história de Geovanna e de sua irmã deu concretude pública inédita no Brasil a uma “pandemia invisível”. O termo foi usado por pesquisadores que publicaram na revista científica The Lancet, em julho de 2021, um estudo sobre a orfandade causada pela pandemia, suas consequências e sugestões para lidar com o problema. Eles estimaram que, até aquele momento, mais de 130 mil crianças e adolescentes brasileiros de até 17 anos já haviam perdido pais ou cuidadores para a Covid-19.

“É preciso saber quem são essas crianças e adolescentes. Onde estão? Com quem estão? Qual a situação deles? Temos de evitar adoções irregulares, separação de irmãos e garantir suporte financeiro e emocional a eles”, ressalta a promotora de justiça da infância e juventude de Campinas, Andrea Santos Souza.

Ela tem feito reuniões com o poder público e organizações da sociedade civil – entre elas, a Fundação FEAC – para discutir o problema e buscar soluções.

A Fundação tem conversado principalmente com o Ministério Público sobre a possibilidade de fazer projetos de prevenção ao acolhimento de crianças ou adolescentes que tenham perdido seus pais ou cuidadores, buscando reforçar outros elos familiares.

Buscando crianças e adolescentes

Antes mesmo de a pesquisa da The Lancet ser publicada, Andrea já havia instaurado, em maio, um procedimento para começar a tirar da invisibilidade as crianças e adolescentes de Campinas cujos pais foram vítimas da pandemia.

“No começo de fevereiro desse ano, comecei a notar um aumento nos pedidos de guarda por causa do falecimento do guardião anterior em decorrência da Covid-19. Era importante entender mais sobre essa situação, e decidi começar uma pesquisa em certidões de óbito”, conta Andrea.

A busca por informações começou no mês de março e, até setembro, já haviam sido identificadas 455 crianças e adolescentes que perderam pai, mãe ou ambos.

Ainda não há dados fechados sobre os perfis tanto das crianças e adolescentes quanto dos pais, mas Andrea destaca algumas percepções: “Muitas das pessoas que morreram são mais pobres. Nas certidões aparecem muito profissões como manicure, diarista ou serviços gerais. Há também muitas crianças ainda na faixa da primeira infância (até seis anos incompletos). Morreram mais pais do que mães, mas faleceram também muitas mães solteiras”.

O objetivo dessa parte do trabalho da promotora é levantar informações, e não tratar individualmente cada caso encontrado. No entanto, Andrea destaca que algumas situações eram tão urgentes que já foram encaminhadas para o Conselho Tutelar verificar.

“Encontramos o caso de três bebês cujas mães morreram no parto. Também houve dois casos com número elevado de irmãos (cinco e sete) em que morreu um dos genitores. Pedimos ao conselho para já olhar essas situações mais emergenciais”, diz a promotora.

Auxílio financeiro

Andrea também está em contato com autoridades municipais em busca de políticas públicas em torno da orfandade em decorrência da pandemia. Ela defende, por exemplo, a adoção de um auxílio a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade que perderam genitores.

A Câmara Municipal de Campinas aprovou, em 13 de outubro, um projeto de lei do prefeito Dário Saadi que cria um benefício para famílias que tenham crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e que perderam ou venham a perder um responsável legal.

Andrea, que participa de um grupo com promotores de vários estados do Brasil, diz que não tem notícia de lei como a de Campinas aprovada por outros municípios, ainda que, em algumas cidades, projetos nesse sentido estejam em tramitação. Isso ressalta o pioneirismo de Campinas ao criar um benefício para os órfãos da pandemia.

O chamado Campinas Protege tem orçamento estimado de R$ 2,25 milhões e prevê o pagamento de R$ 1.500, em três parcelas mensais de R$ 500, para famílias com renda per capita de até meio salário mínimo. O projeto aguarda, agora, sanção do prefeito.

“Tivemos a preocupação de pensar em ações que diminuam as dificuldades daqueles que perderam pai, mãe ou a pessoa que garantia o sustento da família. Campinas é pioneira com o Campinas Protege. Temos que garantir que os órfãos da covid tenham acesso à saúde, educação e condições dignas de vida”, afirma Dário.

Entre os estados, o pioneirismo foi do Maranhão, que aprovou em 6 de julho desse ano um benefício de R$ 500 a serem pagos aos órfãos da pandemia até que completem 21 anos.

A iniciativa serviu de inspiração para que o Consórcio Nordeste, que representa os noves estados do Nordeste brasileiro, lançasse no fim de agosto um programa de auxílio nos mesmos moldes maranhenses, o Nordeste Acolhe. Cada estado precisa criar uma lei específica sobre o tema. Pernambuco foi o primeiro, em 28 de setembro.

Apoio psicológico

A promotora Andrea ressalta, porém, que não basta apenas um auxílio financeiro. É fundamental que haja também apoio psicológico para todas as crianças e adolescentes que perderam seus pais ou cuidadores.

“Eles precisam de um acompanhamento psicológico para lidar com o luto. Já estamos conversando com um grupo de voluntários que faz um serviço desses em Jundiaí, mas tem de haver uma política pública para isso”, afirma Andrea.

Renato Franklin, líder do Programa Acolhimento Familiar da Fundação FEAC, destaca a importância desse atendimento psicológico ao lembrar que há muitos riscos a serem mitigados, como a evasão escolar, a gravidez na adolescência, a exploração econômica e a prática infracional.

“A FEAC pode ajudar muito na questão da orfandade decorrente da pandemia, por ter vários eixos de programas que lidam com muitos desses riscos”, aponta Franklin.

Dois dias depois após o depoimento de Geovanna, em 20 de outubro, a CPI da Covid apresentou seu relatório final. O debate público foi dominado pelas imputações criminais a autoridades feitas pelo documento. Mas há ali também uma proposta que interessa à Geovanna e sua irmã, e a dezenas de milhares de crianças e adolescentes, muitos ainda invisibilizados: a criação de um auxílio nacional para os órfãos da Covid-19.

Por Frederico Kling

Revista Narrativa Social 10 - Fundação FEAC

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